Decifra-me ou te devoro
Capítulo 1 - Frio e Fogo.
Mais uma noite de sexta-feira, são meia-noite e vinte e cinco. O táxi adentra o condomínio e estaciona mais uma vez em frente ao grande casarão.
Enquanto o automóvel já parte virando a esquina, no espaço de tempo em que caminho pelos jardins, confiro – pela décima vez – a maquiagem no reflexo do pequeno espelho. Suspiro profundamente, retoco o batom vermelho e realinho os fios dos cabelos, já checando o horário mais uma vez. Sei o quanto ela detesta atrasos.
Quando bato levianamente à porta, vem rapidamente abri-la. São meia-noite e trinta, em ponto. Todavia, mal me olha na cara, sempre age friamente, com uma praticidade e gelidez absurda.
Em seu irritante ar de superioridade, com o copo de whiskey na mão, vestida em um robe preto – cujo preço do tecido provavelmente custearia todas as minhas dívidas –. Ela sempre está só. Suas companhias resumem-se às bebidas, um livro qualquer, um gato peludo e velho e o rádio que sempre toca incessantemente em um único CD de tango.
Ela é insuportável.
Entre nós, raramente há uma troca de frases, o que me faz acreditar que ela seja um ser completamente entediante.
Não fossem as sonatas irritantes que se repetem no rádio e os sussurros e gemidos audíveis durante a transa, o silêncio reinaria durante todas as noites.
Em alguns momentos, ela me toma nos braços com absurdo desejo, retira minhas vestes com destreza e afasta-se, apenas para observar-me nua, como quem anseia em decorar cada traço meu.
Senta-me sobre o seu colo, acaricia os meus cabelos e me beija os seios. Me olha nos olhos enquanto desliza os lábios pelo meu corpo, chupando-me com a avidez que sempre me faz entrar em torpe.
Nessas horas, me permito cravar os dedos entre os curtos cabelos escuros e entrego-me àquela mulher tão deliciosamente insuportável.
Quando o êxtase se aproxima, ela me sussurra as mais despudoradas palavras e volta a encarar-me. Sei o quanto adora ver o meu rosto se transformando sob o seu toque, e eu, me delicio ao vê-la imergir em mim.
A trago para mais perto, num ato de intimidade que nunca permito aos outros clientes – aliás, que outros? Desde que me permiti bater à sua porta pela primeira vez, já não me preocupo com os outros –, findamos em um beijo sôfrego e lascivo. Por um instante, todas as barreiras caem por terra, enquanto as línguas suplicam por aquele contato aprofundado. Um ato saudoso... Naqueles segundos, quase ecoam os sentimentos mais inconfessáveis. Instigando-me a querer repetir tudo outra vez.
Porém, ela consegue se tornar ainda mais insuportável quando, após a transa, deixa-me ainda ofegante sobre a cama e atira o dinheiro sobre a mesa. Volta a pegar o copo de whiskey, se enrola novamente em seu robe, acende um fino cigarro e caminha varanda à fora, como se eu já não existisse ali.
Voltamos então ao tratamento prático e mecânico.
Talvez seja a maneira mais fácil de me lembrar que sou só mais uma entre as tantas prostitutazinhas que ela provavelmente contrata em variadas noites pela semana.
Eu me visto, recolho o que é meu e confiro as notas, me persuadindo a crer que aquilo é – realmente – tudo o que fui buscar.
Quando me questiono sobre a razão de me permitir voltar tantas vezes, tento me convencer de que é apenas por me pagar tão bem.
Às vezes me passa pela cabeça a vontade de descobrir o que tanto a faz permanecer em solidão.
Desvendar o que existe por trás de toda a intensidade expressa naqueles profundos olhos castanhos.
Derrubar lentamente as grades de toda aquela superioridade e retira-la do interior das enormes paredes daquela mansão. Fazê-la descobrir as tantas maravilhas do mundo.
Poderia fazê-lo...
Deveria fazê-lo...
Acontece que ela espanta o meu sossego e me agonia, assombrando os meus pensamentos diariamente.
Mas logo volto a mim, sabendo que não há maneiras de adentrar em um espaço tão lacônico. Não passo de uma completa desconhecida para ela, que – embora me possua com tamanha intensidade – sempre tomará o meu corpo sem nem mesmo preocupar-se em saber qual é o meu verdadeiro nome.
Com minha personalidade explícita, ao abrir para ela os meus desejos, tenho a certeza de que a afastaria de mim. Não seria nada confortável ao meu ego exacerbado.
Por outro lado, creio também que logo me cansaria de ter que dedicar-me a um ser tão difícil.
Me deixo crepitar entre fagulhas de frio e fogo, seguindo em um jogo quase insuportável, sem rounds aparentes, tampouco fases ou instruções de uso. Apenas uma sequência de atos tesos e devassos, constantemente perdida em uma estranha dependência.
Por detrás de seu mundo impenetrável, ela me diz: Decifra-me ou te devoro.
Em um feito involuntário, o meu corpo a responde: então, come...

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